Terrenos baldios e territórios intransponíveis: o design de comunicação entre a realidade e a ficção.



Um eixo de tensão crítica interrompe o fluxo das imagens – numa era pós-digital, realidade e ficção diluem-se. Esta indefinição não tem apenas implicações criativas, artísticas ou lúdicas, mas é muitas vezes instrumentalizada por estruturas mais oficiais ou mais informais de poder, desconstruindo valores como a democracia, a identidade individual e colectiva, a ética, entre outros fundamentos da nossa sociedade.

Antes da sua actual e “desejável” crise de identidade, o design sempre trabalhou com e para o real. Os objectos produzidos pertencem, circulam e (re)constroem a realidade. A efemeridade da maior parte dos artefactos de design de comunicação também contribui para a ideia de uma disciplina que “serve” o presente. Em suma, o choque inevitável com a realidade define o estatuto social do design.

Pelo contrário, são raras as ocasiões em que o design entra no reino da ficção. Podemos falar da associação frequente do design às práticas e processos de storytelling. Mas este “efeito ficção” corresponde quase sempre a técnicas de persuasão do comércio global para o consumo: a transposição estratégica do nosso desejo ancestral por histórias em histórias de desejo. Podemos então suspeitar que a relação do design com a ficção (entendida como fim em si mesma) ainda é rarefeita, pontuada por aproximações recentes, sob a égide de conceitos como o design fiction ou o design especulativo.

Olharemos para o eixo realidade-design-ficção a partir de dois contextos operativos, traçando uma primeira hipótese: se à crise da realidade parece corresponder a crise no jornalismo, e se à crise da ficção parece corresponder a crise no cinema, quais as formas de ocupação do design dos terrenos baldios que daqui decorrem? Por outro lado, que lugares lhe são interditos, que imagens lhe são imposs(u)íveis?

Para ilustrar estas novas tensões críticas, observaremos a condição que melhor revela a imagem em processo – o contexto educativo.



O mundo inteiro, é demasiado para uma única imagem.


Primeiro, um disclaimer: esta comunicação é como uma prospecção especulativa do terreno, prosseguindo a metáfora do título.
Como sabemos, nem sempre o território que se pisa é seguro, estável. Conto com o vosso sentido crítico para me ajudar a identificar as areias movediças desta argumentação.

Se arriscássemos atribuir uma função absoluta ao design de comunicação, poder-se-ia dizer: a construção de rectângulos de apelo. Podemos fazer esta analogia de um modo literal – pensando nos inúmeros rectângulos que povoam a prática, como cartazes, páginas, ecrãs, etc. – ou simbólico – se pensarmos no código de abstracção gráfica da imagem como um rectângulo cujo interior é preenchido por duas linhas cruzadas que partem de cada um dos seus vértices. Percorremos o campo aberto que provêm desta última hipótese para reformular o nosso primeiro enunciado: por defeito, o design de comunicação constrói imagens, lugares de apelo capazes de interromper o fluxo das restantes imagens.

Nesta suposta tarefa ontológica, o design depara-se com um inúmero conjunto de tensões. Começaremos por discorrer sobre algumas das tensões que interrompem o fluxo das imagens correntes em design de comunicação, para mais tarde demonstrar como este, em contrapartida, pode contribuir para a criação de tensões críticas no imenso fluxo de imagens do pós-milénio. Posicionaremos o lugar do design, entre a realidade e a ficção, eixo tensional que estrutura a contemporaneidade.

Fotograma de Ici et ailleurs (1967), de Jean Luc-Godard.

Mas primeiro, como um preâmbulo, desconstruímos a proposição e começamos precisamente pelo que se entende por fluxo de imagens.
Para isso usaremos o cinema, por 2 motivos:
1)             por nele vermos desenrolar, diante dos nossos olhos, literalmente, um fluxo de imagens; de facto, o cinema tem de lidar com esse fluxo enquanto matéria bruta, matéria editada, e matéria dada a ver;
2)            e por também nele vermos plasmado, quase sempre em tensão, o binómio realidade-ficção.

Partiremos de um excerto do filme Ici et ailleurs (1967) de Jean Luc-Godard (co-realizado com Anne-Marie Miéville). O filme oferece-se como uma lição sobre o valor e peso da imagem e as suas implicações políticas. O filme começa por tentar captar uma determinada realidade – a tensão política nos territórios palestinianos. Mas perante a impotência da câmara em lidar com a complexidade da História, com o fluxo de imagens que decorrem e transcendem as imagens registadas, os autores decidem fazer coabitar a realidade com elementos ficcionais. É também nele que encontramos a frase-síntese “o mundo inteiro, é demasiado para uma única imagem”.

Fotograma de La Chinoise (1967), de Jean Luc-Godard.

Intensificada pelas condições da era pós-digital, realidade e ficção diluem-se. Esta indefinição não tem apenas implicações criativas, artísticas ou lúdicas, mas é muitas vezes instrumentalizada por estruturas mais oficiais ou mais informais de poder, desconstruindo valores como a democracia, a identidade individual e colectiva, a ética, entre outros fundamentos da nossa sociedade. Quais as principais tensões críticas que esta condição impõe na prática do design?

Lançamos para já 4 hipóteses.

A) Porque implica que a disciplina lide com a sua ontologia:
Antes da sua actual e “desejável” crise de identidade, o design sempre trabalhou com e para o real.
Os objectos produzidos pertencem, circulam e (re)constroem a realidade. A efemeridade da maior parte dos artefactos de design de comunicação também contribui para a ideia de uma disciplina que “serve” o presente. Em suma, o choque inevitável com a realidade define o estatuto social do design.

Página do fronstipício de News to Nowhere (1890), William Morris, , KELMSCOTT PRESS.

B) Porque implica que a disciplina lide com a sua história e em particular com a sua origem:
No entender da crítica e historiadora de design Alexandra Midal, a origem da história do design é uma ficção que procura perpetuar uma exclusiva perspectiva funcionalista, baseada numa narrativa dos heróis, sendo destes, William Morris, o que mais reúne consenso no epíteto “o primeiro designer”. Curiosamente, é William Morris que nos mostra sem hesitações que design e ficção são duas hipóteses para um mesmo programa de acção. O pretenso “pai do design” escrevia ficção, na tradição dos romances de utopia.
Destes, destaca-se News from Nowhere; Or, An Epoch of Rest, de 1890, que relata a história do seu alter ego, William Guest, na descoberta de um novo mundo. A narrativa serve como crítica à conversão da civilização aos valores da industrialização, como julgamento ao capitalismo. Precisamente o mesmo espírito crítico que aplicou aos objetos que desenhou, sendo esta uma narrativa sobejamente reconhecida e amplificada pela História do Design.

Se podemos então concluir que a ligação entre design e ficção é primordial, no sentido em que existe desde os primeiros passos da disciplina, como é que o design poderia escapar à ficção ou, por outras palavras, foi escapando à ficção?


C) É precisamente este abandono que nos leva ao 3.º argumento de tensão crítica.
São raras as ocasiões em que o design entra no reino da ficção. Podemos falar da associação frequente do design às práticas e processos de storytelling. Mas este “efeito ficção” corresponde quase sempre a técnicas de persuasão do comércio global para o consumo: a transposição estratégica do nosso desejo ancestral por histórias em histórias de desejo. Podemos então suspeitar que a relação do design com a ficção (entendida como fim em si mesma) ainda é rarefeita, pontuada por aproximações recentes, sob a égide de conceitos como o design fiction, o design especulativo ou o design crítico.

Fotograma de Alphaville (1965) de Jean Luc-Godard.

D)Por último, tensão crítica porque é neste eixo que encontramos a maior parte dos discursos críticos em design.
Ou por outras palavras, quando o design deixa de estar ao serviço da realidade, e encontra nesta o seu tema, o seu mote, a partir dos acontecimentos, eventos ou fenómenos que marcam os assuntos na ordem do dia. E aqui também entra a ficção, como modo de olhar a realidade a partir de outro ângulo.

À tensão crítica equivale a crise ou as crises.
Neste segundo momento da nossa proposição, vamos olhar para os terrenos desocupados ou abandonados por outras crises, para antever como neles se podem edificar outras possibilidades para o design.

(…)
Conferência e texto.

No âmbito do ciclo “A Imagem no Pós-Milénio”, programa Satélite da Porto Design Biennale’19, organizado pela esad-idea (Maria João Baltazar e Tomé Quadros) e com a participação de Sofia Gonçalves, Margarida Brito Alves, Ana Rainha, Cláudia Giannetti, Helena Sofia Silva, Carlos Sena Caires. Auditório da Biblioteca Almeida Garrett, 7 de novembro de 2019.

Texto publicado no livro Imagem no Pós-Milénio: Mediação, processo e tensão crítica (português), ESAD-idea e Image in the Post-Millenium: Mediation, process and critical tension (inglês), Onomatopee, Maria João Baltazar, Tomé Saldanha Quadros (eds.).